Noite do desencanto (parte 1)

Lago Rico era o nome que os homens davam a lagoa. Mas as árvores, os pássaros, os bichos todos, e o próprio Deus, chamavam-na simplesmente de Lagoa Bonita.
Sim, porque tudo nela era bonito, desde o capim que enfaixava a areia branca, onde as arraias de fogo faziam ninho, até ao cume das árvores, onde as grandes aves construíam seus ninhos para protegê-los contra a chuva de inverno.
Jacaré, em noite de lua, criava estrela com o reflexo do luar batendo nos olhinhos vermelhos. Pirilampo fazia flor ambulante pelos mururês. Bicho vivia em paz, sem se importar com coisíssima alguma. Verdade que os mais fortes devoravam os mais fracos, sem tragédia nenhuma, como uma sequencia natural da vida.
Ariranha divertia-se aos montes, lustrando a pele no rio.
Um dia... sempre existe um dia... apareceram os homens.  Os bichos não estavam acostumados com aquilo e não fugiram. Foi então que os homens levaram até a altura dos olhos umas madeirinhas escuras com cano de ferro, puxavam com um dedo, e a coisa explodia e o animal estrebuchava, ferido. Ficava com os olhinhos redondos recebendo a nova mensagem da morte, com uma dor diferente ali estampada.
Existiam uns tão sem maldade, como por exemplo, um bando de macacos pregos que se aproximou para fazer-lhes caretas amistosas. Pois os homens se aproveitaram e levaram os paus de fogo a altura dos olhos, derrubando os pobres, sem piedade.
Então, o estranho rumor, a fala do medo, se propagou entre a bicharada da Lagoa Bonita.
-Cuidado, os homens!
-Eles matam!
-Fujam deles!
-Escondam-se dos homens!
Sobreveio um reinado de angustia e de fuga. Os animais esperavam as horas tardias da noite para viver.
Contudo os homens ficavam cada vez mais satisfeitos. Nas noites, em volta do fogo do acampamento nem tinham tempo para dormir, de tanta pele para esticar, de tanto peixe para salgar. Propagaram a notícia de fartura entre outros caçadores e mariscadores.
Abriram trilhas, passaram canoas, acamparam na beira da Lagoa Bonita. Viam-se suas redes sujas dependuradas no alto das barrancas. Encontravam-se espreitando nas florestas, em volta da lagoa.
-Que vamos fazer? - indagavam as ariranhas de pelo lustroso.
-Pobres de nós! - gemiam os grandes jacarés.
-Melhor será chamar Deus.
-Mas Deus está longe, tratando da bicharada que morre na seca do nordeste.
Resolveram então os jacarés fazer uma reunião, porque a situação estava insustentável. Debateram por longas horas... longas horas de aflição e desespero.
-O que eles mais querem , mesmo, são os jacarés. E eles são capazes de tudo, imitam a voz, o grito, o chamado.
Um jacaré abanou a calda escamosa:
-Até eu, que tenho prática da vida, quase fui na conversa do grito.
-E então?
-Acho que a gente devia escolher um jacaré novo e...
-Eu também já tinha pensado nisso. A gente o alimenta bem. Enche-o de vitaminas para que ele fique bem grande e forte. E que seu couro se valorize bem. Depois a gente oferece o grande jacaré para os homens de presente. Talvez que, ganhando um couro gigantesco, os mariscadores deixem a gente em paz até Deus chegar.
-Mas o jacarézinho não deverá saber - Falou uma fêmea, emocionada.
-Somente quando chegar o tempo.
-E os pais não poderão negar o filho que for escolhido.
Houve um silêncio dolorido. Mas precisaram concordar.
-E ele terá todas as suas vontades satisfeitas...
-E nós o batizaremos de Rei.
Durante uma semana procuraram em todas as casas qual o jacaré que possuía as qualidades  necessárias para o sacrifício.
Até que encontraram um, cujos membros eram esguios, a cauda alongada e o dorso alargado.
-É esse. Temos agora o Rei.
Ignorando tudo, o Rei foi levado e passou a viver cercado de velhos superiores da tribo. Vivia farto, comendo do bom e do melhor. Todos caçavam para ele, deixavam que fizesse todas as peraltices, sem se zangar. Faziam-no andar horas e horas e caminhar tardes e tardes.
Os outros jacarézinhos ficavam de beiço pendurado por não possuírem a metade do prestígio do Rei. Em compensação, ele, dia a dia, se tornava enorme. Tinha um gênio alegre e folgadão e parecia ignorar todo o prestigio que lhe atribuíam. Gostava de nadar no rio em companhia dos outros jacarés menores. Sorria satisfeito quando o elogiavam.
-Vejam que forte está o Rei!
-E que força! 
Provava tudo isso carregando os outros nas costas, brincando com as tartarugas, derrubando capins aquáticos com a força de sua calda volumosa.
Continua...

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