Noite do desencanto (parte 2)

E os meses se ligavam numa cadeia comum, esticando o tempo. E um dia os velhos da região vieram examinar o Rei. Causavam assombro o tamanho e a beleza do jovem jacaré. E o Rei sorria envaidecido, porque, segundo os velhos, nem os crocodilos do Nilo teriam a metade do seu tamanho.
-Chegou o momento, meu filho, de você saber que a sorte o espera.
Tamanha era a gravidade das caras e dos olhares, que pela primeira vez o Rei sentiu o coração contristado.
E comunicaram a extensão dos seus planos. Ele precisava ir. Oferecer-se em holocausto para a sobrevivência da sua espécie. Que um Rei tinha obrigações, mesmo entre os animais.
Ele foi abaixando cada vez mais os olhos, vendo que as águas da lagoa estavam se transformando. Tornavam-se escuras e tristes, coisa nunca observada antes.
-E quando?
Não queria que sua voz lhe traísse o medo.
-Amanhã, meu filho. Quando o sol descer de suas árvores para dormir nós o acompanharemos até perto da grande barreira e você subirá sem receio... porque afinal você é um Rei.
Ninguém disse mais nada até o momento supremo. E quando soou a hora, nem uma lágrima, nem um adeus. Somente o silêncio, cheio de dignidade. A marcha dentro d'água não deixava um ruído sequer escapar. Somente aquele V enorme, destacando-se e formando marolas nas águas da Lagoa Bonita.
-Vá! Agora, meu filho!
A voz tremeu e o Rei quase chorou duas lágrimas.
Mas reagiu. Desligou-se da comitiva e partiu para o seu destino. Sabia que em poucos minutos nada mais seria do que uma lenda. Esperava apenas que seu sacrifício valesse aquela causa, justa e nobre. Que coroasse de êxito a esperança dos corações dos velhos.
Então o Rei começou a rezar baixinho sua prece de adeus:
"Deus, meu amigo, parto para uma viagem de que mal conheço a finalidade. Como você vê, não estou sendo fraco, nem quero desiludir o povo que tanto amei. Quero que você me dê força para chegar lá. Daqui já antevejo as luzes das primeiras fogueiras. São os homens, Deus! Os homens! Que mal lhes fiz? Apenas ajudei a limpar a carne podre das águas e das lagoas, para que eles também não adoecessem, caso fossem beber... Mas quero agradecer os momentos bonitos que você me deu. Meus olhos não se esquecerão, enquanto durarem, da beleza do céu e do voo maravilhoso das garças. Meus ouvidos guardarão a música dos ventos sobre as árvores da selva. Meu coração tão fraco e tão pequeno deseja, e rapidamente, porque o tempo urge, que a minha raça sobreviva forte e feliz. Não voltarei meus olhos para me despedir porque sei que irão chorar e eu não tenho o direito de recuar porque sou o Rei. E agora que toco na ponta da barranca, só poderei ouvir mesmo o som sobressaltado do meu coração ainda tão moço.  Mas por tudo e todos, obrigado, Deus!" Ergueu o corpo forte e principiou a subir angustiado a barreira, a margem da Lagoa Bonita. Noite ainda não era. Mas a tarde já se fora. Caminhou em direção das fogueiras e das redes. Houve então um começo de pânico e gritaria.  -É um monstro! -Apanhem as armas! -Peguem as quarenta e quatro e as vinte e dois! -Depressa! -É o maior jacaré do mundo! E o Rei parou, indeciso, esperando resignado.  Os homens armados foram fechando um círculo à sua volta. -Cuidado, gente!  -Esse bicho é dos manso, é dos que não foge. -Devera, inté parece que esse animá nunca viu um home! Outros homens cerravam o círculo, armados de machado e de arpão.  -Quano eu dé siná, todo mundo atira. -Vigi! Se ele sobe aqui de noite, quano todo mundo durmia, dava cabo da metade da gente. As armas foram erguidas e a fuzilaria começou.  O Rei sentiu grande dor e o sangue escorrendo entre os olhos, por baixo dos membros. E pensava nos últimos momentos, enquanto a sua enorme cauda chicoteava sua agonia, que os homens nem desconfiavam de que tinha vindo ali em missão de paz, que não queria matar ninguém. Nem sequer podiam observar a bondade dos seus grandes olhos, tão moço, morrendo refletindo as chamas da fogueira, e mais no alto a beleza do céu cheio de estrelas.  Nova fuzilaria, mas dessa vez não sentiu mais nada. Os homens beberam e cantaram satisfeitos, dizendo: -A gente precisa prercurá mais nesse lago. Pois se tem um animá desse tamanho, deve ter muito mais. -Com dez côro desse, qualquer home pode enricá! -É mais que ouro num garimpo... E os homens caçaram ainda mais os jacarés... Os jacarés não tiveram paciência de esperar Deus, agiram por desespero e piorou a situação da tribo.  É preciso ter paciência. 
Fim 
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